segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Simpatia de Benzedeira

               



        











            - Acenda as velas!
      O estrondo chega seco, quase junto ao piscar do relâmpago. Marina está assustada. Depois daquele, cada iminência de um temporal alimenta o trauma. "Tudo de novo, não"! Os olhos arregalados miram a cruz de sal sobre o prato branco, bendição repetida por sua mãe a cada prenúncio de tempo instável. A voz de dona Aurora sai desengasgada: “minha filha, vai passar. Acenda as velas, leia a oração e deite”.
       Marina não teve tempo de seguir o materno conselho.


                                     Bruno Brum Paiva        


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Fragrância













De tanto procurar
flores
encontrei
a primavera
  
      Bruno Brum Paiva

sexta-feira, 20 de setembro de 2013
















As Corujas
de Tavares


Há objetos em que o uso ultrapassa o significado primário do próprio nome. A coruja a que me refiro, quem diria, não é a ave símbolo da inteligência e sim um acessório para o trabalho em dias de sol. Naquela cidade litorânea, até fins da década de setenta, apresentar-se à sociedade exigia algumas regras comportamentais que bem justificava a importância de ser visto como um cartão de visitas para o seu futuro social. A moça, entre outras coisas, não poderia estar com a pele escurecida pelo sol, podendo tal feito culminar com a evaporação precoce de um eventual casamento em alinhavo, pois o trabalhar na roça era estigma de escravidão. Como uma donzela que almeja lograr um belo par, dizendo-se bom partido, aparece enegrecida pelo sol da labuta?
Surge então a coruja, uma primitiva armação de arame coberta com pano originalmente vindo como saco de açúcar. A armação, uma meia-lua que, com o sol de frente, a pessoa o avançava, fazendo então uma longa aba que protegia totalmente o rosto. Abaixo do queixo ficava preso com uma fita um delicado barbicacho. O mais incrível era ver aquela perfilhação de meninas perpendiculares aos canteiros de cebola, feijão ou milho, com suas corujas alvejadas e ora soltas à frente, ora suspensas à testa, quando então o sol já queria adormecer no horizonte. Entre o alaranjado crepuscular e o pipocar das estrelas muitas viagens de semeio, muda ou capina das respectivas culturas de época eram feitas até que alguém –sempre há um líder entre os trabalhadores- dava o sinal de que o expediente chegara ao fim. Esse ato, em se tratando de um sábado, era apenas um hiato entre a jornada de trabalho e o baile. É claro que em plena lavoura, independente do calor, mangas compridas seguidas por luvas colaboravam na performance visando manter as casadoiras lânguidas e formosas. Pó de arroz, clara de ovos, óleo de mocotó e babosa completavam os ingredientes para deixar pele e cabelos aconchegantes e como boas iscas para o enlace.
Com o passar do tempo e a mudança dos hábitos, a coruja vai lentamente cedendo espaço aos chapéus de palha e bonés. Hoje, a proteção dá-se por uma questão de saúde e não estética, dada a perfuração da camada de ozônio e a sensação térmica sufocante. Por ironia do destino e consequentes modificações ditadas pelo mercado da moda, o atual branquela é aquele que trabalha, e numa sociedade de profundos traços e ranços escravocratas o desprezo pelo trabalho faz com que as netas das que trabalhavam sob corujas e luvas, não estando suficientemente bronzeadas pelo que significa praia e jamais trabalho, busquem então um complemento até artificial para que a pele não fique branca, sob pena, do outro lado de uma mesma moeda, de se verem rejeitadas por não acompanharem o que temos como valor vigente de pele.
Atualmente, nossas corujas repousam na memória à espera de um reconhecimento quem sabe em forma de museu.
Em tempo: essas corujas guardiãs residem na praia do Mar Grosso, em Laguna/SC. Fotografia registrada na última passagem pela terra de Anita, março de 2008.


Bruno Brum Paiva

domingo, 8 de setembro de 2013

O Grito*





      Naquela noite tudo parecia estranho, nenhum caminho levava ao sossego. A lua cheia, surgida no crepúsculo, de repente viu-se tragada pelas nuvens da chuva. Chuva é sinônimo de sapos, e o coaxar alegre dos anfíbios povoa musicalmente as trevas no Vale dos Monges, onde estamos. Raquel odeia sapos. 

      A noite avança rumo a segunda-feira. Todos foram embora, todos os que se propuseram a passar o feriadão de páscoa naquela casa. E nós, ficamos. Por que a coragem, por que a insistência de mais um dia? Aquela noite pôs em xeque o silêncio das anteriores.

       A terceira roda do mate inicia o giro quando Raquel dá um pulo da cadeira. A aranha armadeira fez escala em seu ombro antes de pousar no chão, sisuda, encarando-nos com seus ferrões a postos. Gelamos. Os princípios  ecologistas foram abafados pelo instinto de sobrevivência, e Protásio primeiro a trucidou para depois  perguntar se concordávamos com a subtração do aracnídeo. Não imaginávamos, então, aquela exceção à vida  estendida outras cinco vezes, somatizando um terror descomunal nos momentos seguintes. Em seguida, Protásio abre a janela e só não tem seu  rosto como alvo certeiro porque a rapidez age em forma de precaução. O animal morre pelejando contra a vassoura que o esmaga, da mesma forma outras duas, que cruzam do quarto para a sala. Vou ao banheiro, acendo a luz e no espelho está outra, mirando-me no reflexo. Quebrar o vidro? Minutos depois, a vassoura assassina disseca seu movimento perpendicular à parede, dando cabo a mais uma guerreira dessa noite sem fim.

        A chuva passa e o mate é retomado, temperado pelas mais escabrosas estórias. Hora de dormir, camas no chão, tudo é movimento. Como nas outras noites, Protásio dorme no sótão. O sono vem, meio sestroso, tomando embalo na tensa madrugada. Seu rompimento é brusco, acionando os sentidos de alerta após o berro estremecedor de Protásio. O alvorecer é marcado pelo grito de exorção, fuga, pavor, liberdade ou quem sabe uma sonora saudação junto aos pássaros do outono. Até hoje nunca soubemos.  

                                      Bruno B. Paiva

*Publicado no livro 101 Que Contam, Editora Nova Prova, 2004. Org. Charles Kiefer.