quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Cap. 6 - Itapuã e Pelourinho


Itapuã
"Passar uma tarde em Itapuã, ao Sol que arde em Itapuã". Eis um desejo antigo de ver o que viram os olhos de Vinícius, debruçar o olhar por onde areia, oceano, pedras, cactos, despenteados coqueiros, espigões e o Farol, aquele sinalizador náutico único, singular, listrado, marcado no imaginário de todos nós. Estamos em Itapuã comendo agulhinhas e tomando caldo de sururu. Solaço a pino, ventinho manso e um suave rádio a tocar música brasileira de primeiro porte. Parece mentira, mas ficamos duas semanas na Bahia sem os ruídos de Ivete Sangalo e Daniela Mercury. Nenhuma vez. Abençoamos os pés na água azul de uma maré crescente. Muita caminhada e, por fim, uma conversa ao lado de Vinícius mirando a beleza do Farol de Itapuã.
Salvador está enorme; o trânsito, insuportável. Levamos quase uma hora até o Pelourinho. Muita abordagem, uma insistência cansativa por toda parte. Andamos no Elevador Lacerda, entramos em algumas igrejas e zarpamos para a Praia do Forte. Definitivamente somos viajantes na busca do conhecimento com lazer, jamais do ponto turístico.
Bruno Brum Paiva

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Cap. 5 - As Baleias e as tartarugas marinhas



Sempre gostei de animais, sobretudo os de grande porte. Domesticar um cavalo exige uma habilidade e um grande respeito. E depois que ele fica amigo e confiante na pessoa, difícil imaginar a força que continua possuindo. Mas num leão não se monta e tampouco numa baleia. A jubarte atinge o peso de 30 toneladas, porém sua leveza e rapidez no oceano lembram a agilidade de um felino. Ela brinca, pula, se esconde, ressurge ao lado do barco, borrifa, espia, se joga de lado, de costas, bate com a cauda n'água como se fosse a palma de nossa mão. Quando está num grupo faz uma verdadeira competição acrobática.

Ignoramos o pedido de silêncio. Impossível não vibrar, gritar, aplaudir as enormes baleias em seus saltos e sopros. Elas chegam muito perto do barco, conferem o que está acontecendo e, conforme seu humor, dão um verdadeiro espetáculo ou simplesmente desaparecem na profundeza das águas atlânticas.

Fizemos dois passeios em alto mar. No primeiro o vento estava forte demais, e o susto foi maior que o prazer. Nada de baleias. Na segunda tentativa, a compensação. Céu azul, mar liso e muitas baleias por todo lado. É uma experiência singular, profunda, verdadeira e muito emocionante. As baleias existem e sorriem aos que se aventuram a visitá-las.

O Projeto TAMAR é outro grande marco da Praia do Forte. Criado em 1980 para proteger as tartarugas marinhas em extinção, hoje é uma referência internacional no processo de conscientização da população nativa e também dos visitantes. Acompanhamos a salvação de um filhote por parte de um mergulhador. O pequeno réptil estava agonizando numa poça de óleo na beira da praia quando chegou o socorro. Foi lavado, massageado e conduzido ao Projeto TAMAR para um tratamento. Acompanhamos o trajeto e acabamos fazendo amizade com a equipe. Visitamos várias vezes a tartaruguinha, que dia após dia estava mais serelepe. A ideia da equipe era de que nós a devolvêssemos ao mar, uma forma de agradecimento pela atenção que dispensamos. Não foi possível. Voltamos a Porto Alegre pensando nela. Hoje recebemos a notícia de que foi devolvida ao mar completamente recuperada.

Os saguis são outros habitantes que vivem soltos por toda a vila de pescadores que compõe a Praia do Forte. É mata atlântica, é o habitat dos símios. Às vezes aparecem em bandos, e até uma briga feia presenciamos por conta de um estranho que surgiu. Se não é da turma, não fica. Mas quando é, a festa é grande. E sabem a hora da exibição à máquina fotográfica. A decisão sempre é deles, não do fotógrafo.


Bruno Brum Paiva



domingo, 27 de setembro de 2009

Cap. 4 - O albergue


Albergue Praia do Forte
Conheci o primeiro albergue em Recife há cerca de quinze anos. Era o Projeto Nordeste nas Estrelas, cujo intuito era o experimentalismo de uma vida num outro lugar completamente distinto dos pampas sulinos. Lá conheci o banho de piscina. É verdade, fui entrar nesse grande tanque pela primeira vez aos 26 anos. E gostei. Gostei de tudo, de toda a proposta de uma hospedagem em albergue. Depois vieram outros como o da Praia de Iracema, em Fortaleza, e o Cidade do Sol, em Natal.

A escolha da Praia do Forte foi muito influenciada pela qualidade do seu albergue. Boas informações no site, desde preços a todos as vantagens e acessos por conta de seus convênios. Tudo pela web. Arriscamos. E eles cumpriram à risca tudo o que estava proposto, sem enrolação, sem desculpas, sem adendos. Enfatizo bem essa questão, primordial numa viagem, pois não é raro entrar num pacote que muitas vezes está furado. Acertamos tudo antes da saída. Reservamos, pagamos a metade e lá estava o quarto ONÇA. Depois até vimos outros bichos: tartarugas marinhas, baleias, saguis, gatos, tubarões, jegues e até quero-quero. Sabiás cantantes à primavera, só em Porto Alegre.

O café da manhã no albergue é uma verdadeira comunhão. Aquele ''bom dia'' é sempre cúmplice de um grande passeio que foi ou será realizado. A comunicação acontece, e é nessas horas que a importância de se dominar outro idioma é primordial. Estavam hospedados alguns ingleses, alemães, norte-americanos, argentinos e brasileiros dos mais variados recantos. Como a coincidência não pode ser deixada de lado encontrei uma pessoa que, após um longo exercício de memória, se deu conta de que realmente nos conhecíamos. E da Agência Filatélica. Escrever cartas continua sendo uma prática, mesmo da novíssima geração.

Praia do Forte, para voltar; Albergue Praia do Forte, sem pestanejar.


Bruno Brum Paiva

sábado, 26 de setembro de 2009

Cap. 3 - Dois olhares sobre Raimundo

Facão laminado na mão ligeira. Alisa o cabo, limpa o coqueiral. A mata inteira é do Raimundo, que mede cada coqueiro com o olhar. Sabe com precisão quantos abraços necessita até alcançar o apinhado cacho. "Ainda não nasceu coqueiro que eu não tenha conseguido subir", repete como se fosse um mantra.
Pergunto se aquele coco é para vender. Ele responde que não, que apenas limpa o coqueiral para não cair seus frutos em cima das casas com o vendaval dessa época do ano. E os cocos? Eles ficam aí para quem quiser, pois esse coco grande ninguém compra. Coco do chão é do mundo, não tem dono não.

x-x-x-x-x-x-x-x

Raimundo

É do coco, é do mundo

facão laminado na mão ligeira

limpa o coqueiral, alisa o cabo

a mata inteira é do Raimundo.

Raimundo mede o coqueiro com o olhar

sabe quantas braçadas necessita

para alcançar o apinhado cacho.

Tá por nascer coqueiro que eu não suba.

Nativo compra não o coco que bebe

só bebe o que encontra no chão

coco do chão é do mundo, tem dono não

fica solto para quem quiser levar

o que tá no chão é do mundo.

Bruno Brum Paiva


Cap. 2 - Uma Mulher Brava


A trajetória entre a Praia do Forte e o Aeroporto de Salvador teve um momento peculiar. No trevo de acesso a Itacimirim embarcou uma cabra furiosa da peste. Pelo sotaque parecia pernambucana, mas era melhor não perguntar de onde veio. Entre os muitos episódios envolvendo sua brabeza destaca-se o enfrentamento ao ex-marido armada de facão, peixeira e faquinha de serra. Para não falhar. Ela chuta, bate, se bota, não tem medo de nada nem de ninguém. Noite é dia e dia é noite. Enfrenta tudo. Da palavra ao murro e deste à facada é uma questão de segundos.


"Maria Ferreira me chamo e até hoje só levei tapa na cara de painho. E quando era menina, porque depois de grande veio me bater e eu dei um empurrão que ele caiu de cabeça no chão. Nunca mais chegou perto d'eu. Minha mãe dizia que eu deveria ter nascido homem. Homem pra quê, se o que mais tenho é coragem e força? Homem só monta em mim naquela hora - e tem que fazer bem feito se não eu dou é de unha nele. E tem mais: gosto de beber e bebo tudo: vodca, conhaque, cachaça ou cerveja. Sou forte na bebida, não só dessas que bebe, perde a cabeça, tira a roupa. Fico bêbada não. E, se já tô braba, aí é que a fúria aumenta.E garrafa eu quebro na primeira batida e já vô pra cima do cabra. Me chamo Maria Ferreira."

Quando ela pronunciou seu nome, logo pensei: é parente do Virgulino. O rei do cangaço deixara descendentes por onde essa mulher nasceu, tá aí o sangue refinado do maior vingador de Serra Talhada. Mas ela não parou de falar, e minha suposta árvore genealógica perdeu o fio da meada.


Os passageiros trocaram olhares. Um deles, evangélico, cochichou para o outro que ali faltava uma pitada de Jesus no coração da cabocla. "Já pensou, motora, que tal chegar em casa e essa mulé te esperando bem afiada? Eu largo é fora, que nasci com as canelas fina e boa pra disparada.Tô aí pra morrer de besta? Se ela é assim, imagina o pai dela." Pensei na importância de se pagar o seguro facultativo - viagem dessas requer periculosidade.

Ao descer em Lauro de Freitas, última cidade antes de Salvador, até o ônibus ficou mais leve. A vivente falou em pouco mais de meia-hora que até parecia um filme, um comício, um espetáculo, um episódio... afaste-se dessa mulher!

Salvador ia ficando pequeno na ponta da asa direita da gigantesca aeronave. Durante o voo fiquei pensando na infância, na adolescência, na vida de Maria Ferreira. Que força nas palavras!


Bruno Brum Paiva

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Cap. 1 - Viajante ou Turista?


O Projeto BA nasceu, como tantos outros, a partir de um desejo. Desejo de quê, fome de quê? De estrada. Há tempo queria voltar à Bahia, olhar para o olhar do Castro Alves a esvoaçar espumas flutuantes entre os faróis da Barra e Itapuã, tomar água de coco e comer tapioca na terra mãe por onde o Brasil se foi visto.
O conselho primário de uma amiga era que conhecêssemos Chapada Diamantina. Pesquisas climáticas, tomada de preços e uma infinita combinação de tempo de férias e deslocamento fizeram a ideia inclinar para o mar. Quem sabe uma praia, um lugar quente para comungar esse binômio Sol e sal? Salvador, grande demais. Queremos somente um mar de água, não de gente. Encontramos Praia do Forte, visualizamos Praia do Forte, decidimos Praia do Forte. Trajeto, tarifas, comida, hospedagem e as mais variadas possibilidades de um aproveitamento ao máximo com o mínimo de grana. E aí começa a batalha. Razoável número de dias para uma verba modesta. Não podemos errar: o período é esse, a grana é essa. Foram três meses entre a prospecção e a consumação. Passo a passo. Cruzamento de dados. Confirmações. Reservas, passagens e a espera para o embarque. Chamamos de projeto porque é um minucioso planejamento de viagem.
Viajante ou turista? A relação com os nativos, a busca pelo conhecimento da história da região e como isso será integrado no contexto da minha vida. Esse é o mote. Não posso somente fotografar para dizer que fui. Não, eu estava lá. Estive lá. Estou lá. O meu presente é agora. Aqui. Depois, ficará. Mas o agora é aqui. E assim o foi. Viajamos e viajamos para o lugar e no lugar. Sempre faço um diário de bordo, pois são muitas informações simultâneas e pouco ou nada deverá ser esquecido. Essa é a primeira vez que compartilho a experiência publicamente. Faremos um resumo não linear. Projeto BA conquistado, vamos a outros.
Bruno Brum Paiva

sábado, 19 de setembro de 2009

Projeto BA


Às vezes um projeto de viagem nasce de um sonho, simples sonho de conhecer um lugar distante. Como tantos outros, o Projeto BA foi germinando aos poucos. Internet, fotos, telefonemas e o livre tráfego de dúvidas até sua consumação. O silêncio sempre a retumbar os arcos do Mosteiro. De cortador de unha a paracetamol, nenhum detalhe olvidado. Papel, muito papel e vários tipos de caneta e lápis - lápis de cor também. Faremos um gotejo em capítulos dessa viagem que nos próximos dias fechará seu ciclo enquanto ação. Antes da primavera o primeiro capítulo ancorará por aqui.


Bruno Brum Paiva

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Palavras de Raimundo




Nativo compra não o coco que bebe
Só bebe o que encontra solto no chão
Coco do chão tem dono não, é do mundo.

Bruno Brum Paiva

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Temporada


Azul mar verde coco grelhado peixe
sublime confluência dos prazeres
alma, para que sejas do mundo
pés soltos na estrada
"sua poeira é a melhor vitamina"

Entremeados entre Sol e chuva
tartarugas, tubarões e baleias
tapioca muqueca caju cajá
sincronia das violas dos Chorões da Vila
o âmago é a busca
e acredite: não trouxemos chimarrão.

Bruno Brum Paiva

domingo, 6 de setembro de 2009

Cantos, Rosas, Grilos, Cravos, Aranhas...

A roda da cantiga mergulha no imaginário. O ambiente é lúdico. A leveza da flauta substitui o aroma matutino. Os bichos estão soltos no olhar de cada instinto. Alguém chama, dá o tom, bota a engrenagem a funcionar e a pequena floresta alvorece lentamente. O vaga-lume belisca as plantas como se fosse um beija-flor. O grilo acorda, a aranha tece, o cravo se faz presente, a rosa exala. E o canto encanta o desfilar cântico de nossa infância. Todos se veem na construção daqueles valores um tanto inocentes e nem por isso ingênuos. Pais disfarçam ao cantarem para os filhos aquilo que cantam para si mesmos. Canto de Cravo e Rosa, o último trabalho de Viviane Juguero em temporada no Teatro de Câmara Túlio Piva, em Porto Alegre, coloca-nos no quintal de casa, uma casa povoada de palavras, versos, cantigas, medos, curiosidades e muita vontade de resolver um conflito. O fio da harmonia não quer ser rompido, menos pelo amor que pela amizade; talvez menos pela amizade que por uma ética profunda que trespassa a vida de todos os habitantes daquela comunidade, por mais diferente que seja o representante de cada espécie. Essa ética é a linguagem comum entre os seres, é o esperanto que permite a todos se entenderem e por fim se alimentarem no antagonismo qualificante de cada um.
Vi o Canto três vezes: na primeira eu era uma criança, inteira, despida. Mas faltava uma referência para entregar-me ao espetáculo. Então levei minha Mãe na segunda vez, e ela ficou mais criança do que eu - pois vivera mais verdadeiramente a força daquelas canções em sua meninice. Para dirimir as dúvidas e pulverizar outras na relação com essa trama voltei ontem ao cenário. E a sensação foi a da primeira vez, a da segunda e talvez de outras tantas que venha a assistir. Percebi que não estava sozinho quando debatemos o espetáculo numa livraria/café na Cidade Baixa, quando o pensamento seguiu emitindo vida após o nascer da Lua cheia, quando prosseguimos falando enquanto o Marujo beirava o Guaíba, quando despertei na manhã seguinte ainda plugado na linha melódica daquele trompete que nenhum outro aracnídeo sabe frasear. Que todos vejam, abram os olhos da alma, despertem e se sensibilizem com o Canto de Cravo e Rosa.
Bruno Brum Paiva